terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Ausência

Hei de edificar a vasta vida
que mesmo agora é teu espelho:
toda manhã hei de reconstruí-la.
Desde de que te afastaste,
tantos lugares se tornaram inúteis
e sem sentido, como
luzes no dia.
Tardes que foram nicho de tua imagem,
músicas em que sempre me esperavas,
palavras daquele tempo,
eu terei de quebrá-las com minhas mãos.
Em que profundezas esconderei minha alma
para que não enxergue tua ausência
que como um sol terrível, sem ocaso,
brilha definitiva e impiedosa?
Tua ausência me cerca
como a corda o pescoço.
O mar em que naufraga.

BORGES, Jorge Luis. Primeira poesia. Trad. de Josely Vianna Baptista. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Trecho de um dos contos mais bonitos que já li


Não tiveram que limpar seu rosto para perceber que era um morto estranho. O povoado tinha apenas umas vinte casas de tábuas, com pátios de pedra sem flores, dispersas no fim de um cabo desértico. A terra era tão escassa que as mães andavam sempre com medo de que o vento levasse os meninos, e os poucos mortos que os anos iam causando tinham que atirar das escarpas. Mas o mar era manso e pródigo, e todos os homens cabiam em sete botes. Assim, quando encontraram o afogado, bastou-lhes olhar uns aos outros para perceber que nenhum faltava.

Gabriel García Márquez, O afogado mais bonito do mundo


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Imagem: Foto de Ponta dos Mangues por Thatidye