quarta-feira, 7 de abril de 2021

A chuva

Tradução: Wedmo Mangueira

Iluminou-se a tarde bruscamente
porque já cai a chuva cuidadosa.
Cai ou caiu. A chuva é uma coisa
que sem dúvida ocorre antigamente.

Quem a ouve cair saudades sente
de um passado em que a sorte venturosa 
revelou uma flor chamada rosa
e a curiosa cor do rubro ardente.

Esta chuva que escurece os cristais
alegrará em perdidos locais
as negras uvas de uma parra em certo

pátio que já não existe. A molhada
tarde me traz a voz, voz desejada,
de meu pai que volta e que está desperto. 

Jorge Luis Borges


La lluvia

Bruscamente la tarde se ha aclarado
porque ya cae la lluvia minuciosa.
Cae o cayó. La lluvia es una cosa
que sin duda sucede en el pasado.

Quien la oye caer ha recobrado
el tiempo en que la suerte venturosa
le reveló una flor llamada rosa
y el curioso color del colorado.

Esta lluvia que ciega los cristales
alegrará en perdidos arrabales
las negras uvas de una parra en cierto

patio que ya no existe. La mojada
tarde me trae la voz, la voz deseada,
de mi padre que vuelve y que no ha muerto.

Jorge Luis Borges

terça-feira, 16 de março de 2021

sexta-feira, 3 de julho de 2020

Singradura


Estes versos não têm a vocação
necessária pra ser literatura...
São bem mais que palavras na brancura
de um papel implorando aprovação.

São pedidos de ajuda, sei que são...
Vãs garrafas de náufrago à procura,
numa longa e incessante singradura,
de uma incerta e improvável salvação.

Pobres versos que ao mar eu arremesso
– naus errantes buscando sem sucesso
um destino seguro, um porto, um norte...

Sou um náufrago só lançando ao mar
as palavras que podem me salvar:
escrever é tentar fugir à Morte!

Wedmo Mangueira – 03/07/2020  

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Sonetilho para Marina


A Marina Mangueira

Antes dessa mão macia
segurar tão firme a minha,
não sei quem me conduzia,
nem caminhos sei se tinha...

Quando não se anunciava
sua vinda, eu sabia
que meu peito respirava,
mas não creio que vivia.

Logo após sua chegada,
tanta vida me foi dada,
meu olhar, enfim, se abriu

e entendi em um segundo
que foi ela, lá no fundo,
quem de fato me pariu.



Wedmo Mangueira - 30/07/2015

domingo, 9 de março de 2014

Aos pés do mar


















A Zila Mamede

Construí minha casa aos pés do mar,
não com pedra, madeira, alvenaria,
mas com raios de sol, com maresia
e com tintas azuis de marear...

Essa casa, tão leve quanto o ar,
se assentava em verbo, em poesia,
e nenhum temporal ou ventania
foi capaz de abater, nem de abalar...

Certo dia, fui conhecer de perto
as belezas que a voz do mar aberto
me soprava no ouvido em sigilo

e deixei para trás, então, meu lar
que um dia ousei arquitetar
bem aos pés deste mar em que me exilo.


Wedmo Mangueira

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Imagem: Rooms by the sea - Edward Hopper

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Tua boca diz "mar" no meu ouvido

















Quando a boca diz "mar", que gosto tem?
 Wedmo Mangueira

Tua boca diz "mar" no meu ouvido
e me incita a pensar em horizontes...
Já não tenho certezas  portos, pontes ,
pois me fiz marinheiro destemido!

Naveguei mar adentro, endoidecido,
sem portar carta, bússola, astrolábio...
Só carrego a lembrança dos teus lábios
sussurrando "mar" junto ao meu ouvido.

Tua boca diz "mar"... Nem faz sentido,
mas me vi, de repente, assim perdido,
pra depois me encontrar no teu mar fero...

Desde então, neste mar que me devora,
tenho feito de ti, a toda hora,
minha rota, meu cais, meu marco zero!

Wedmo Mangueira

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Imagem: Farol de Colonia del Sacramento, Uruguai.


sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Cabaré no Sertão

2º Lugar no V Prêmio de poesia popular João Sapateiro

No sertão, todo dia é cansativo:
de manhã tem um galo estridente
despertando bem cedo toda a gente
pro trabalho esforçado do cultivo,
mas depois do cansaço excessivo
dessa dura rotina sertaneja,
tem cachaça, mulher, fumo e cerveja
no bordel que estiver menos lotado.
Cabaré no sertão é tão sagrado
quanto a missa aos domingos na igreja.

Pra alegrar de verdade a matutada
basta um monte de nega zuadenta.
Alcatrão, 21, pedra 90,
e a festa já tá organizada.
Ralar bucho até de madrugada,
escondido, sem que a patroa veja,
numa nega zambeta que manqueja
é o melhor passatempo já inventado.
Cabaré no sertão é tão sagrado
quanto a missa aos domingos na igreja.

O matuto não tem necessidade
de fazer essa tal de terapia,
pois no brega ele encontra, todo dia,
atenção e respeito de verdade.
Isso mostra a tamanha utilidade
do puteiro na vida sertaneja.
Não é só come-come e beija-beija.
Quem pensar desse jeito tá enganado.
Cabaré no sertão é tão sagrado
quanto a missa aos domingos na igreja.

Sendo eleito prefeito ou coisa e tal,
eu prometo criar um benefício
garantindo ao baixo meretrício
incentivos como isenção fiscal.
Pra aquecer o setor comercial
e alcançar o progresso que se almeja,
eu prometo também, pra quem me eleja,
um imenso bordel estatizado.
Cabaré no sertão é tão sagrado
quanto a missa aos domingos na igreja.

Wedmo Mangueira

Link da matéria sobre entrega da premiação: http://www.laranjeiras.se.gov.br/ler.asp?id=160&titulo=noticias

terça-feira, 2 de abril de 2013

Massagem

Não escondo,
nem nego
o trivial:
só me apego
— é natural —
a quem mexe
com meu ego
e com meu pau.

Wedmo Mangueira

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Cultivo


Laranjeiras vista do Alto do Cruzeiro, por Neu Fontes

Primeiro lugar no IV Prêmio de Poesia Popular João Sapateiro, que tinha por tema: "180 anos de emancipação da capital da cultura popular". 

Entre sete colinas encravadas
bem aos pés de um riacho de água pura,
uma vila de grande formosura,
tal qual uma semente, foi plantada.
No começo, não era quase nada,
mas o tempo danou-se a passar
e a semente, passando a germinar
de maneira sutil, silenciosa,
foi virando uma planta bem vistosa
que até hoje dá frutos sem parar.

Essa planta, distinta das demais,
se nutria de um jeito diferente,
não de vento, de água ou de sol quente,
mas de tudo que a sua gente faz:
suas danças e cantos ancestrais
que os escravos trouxeram do além-mar,
seus pedidos e preces, seu orar,
seu labor, seu suor, seus desafios,
suas feiras, igrejas, casarios,
sua história de luta secular...

Uma planta nutrida de tal jeito
geraria bons frutos certamente
— uma gente bastante inteligente,
que merece de todos o respeito.
Esses frutos, que canto satisfeito,
são pessoas do porte de Nadir,
de Seu Deca, que brinca o Cacumbi,
de Seu Sales, que leva o São Gonçalo...
Não me canso jamais de admirá-los
nestes versos que vou tecendo aqui.

São pessoas do porte de Zizinha
ou de Bárbara, líder das Taieiras.
São humildes, gentis e verdadeiras,
que nem Duda, Euclides e Lalinha.
Quase esqueço do Mestre Zé Rolinha,
pois são tantos que nem dá pra lembrar,
e outros tantos ainda irão brotar
dessa planta tão bela e brasileira,
uma planta chamada Laranjeiras,
capital da cultura popular.

Wedmo Mangueira - 12/07/2012



Link da matéria sobre a entrega da premiação:
http://kokalaranjeiras.blogspot.com.br/2012/09/prefeitura-de-laranjeiras-entrega-iv.html

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Domingo



Num momento impressentido,
sem querer, fui seduzido
por teus olhos de tocaia...

Desde então, me vi perdido,
como alguém que, sem sentido,
mata a mãe e vai à praia.

Wedmo Mangueira - 2012

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Imagem: "Homem no mar" (2010), aquarela de Eduardo Nadai.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Um poema de Ezio Déda

Conheço Deus no esquecimento de minha casa
Ele descansa das súplicas cotidianas
Nas oscilações acústicas de minha insensatez
E sonha com o dia em que eu não precise mais estar ausente para que possa chegar
Somos duas naturezas estranhas que se sabem pelo que não se dizem
Ele, o ar intenso das atmosferas celestiais e do mundo sem fôlego
Eu, o elemento que peregrina insano nos calcanhares da criação.


Ezio Déda


Natural da cidade de Simão Dias-SE, Ezio Déda é arquiteto e escritor. Tem dois livros de poemas publicados:"Árvore de folhas caducas", de 2001, e "A casa das ausências", de 2010. Este último, do qual o poema acima faz parte, foi lançado pela Editora 7Letras.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Meta Linguística

Mesmo a meta sendo nobre,
fica registrada a dica:
se o poeta é feio e pobre,
pra que rima bela e rica?

Wedmo Mangueira - 2009

terça-feira, 25 de outubro de 2011

Navegante

Mestre Sales da dança de São Gonçalo
Segundo lugar no III Prêmio de Poesia Popular João Sapateiro, que tinha por tema: "Personagens da cultura popular de Laranjeiras".

De uniforme e chapéu de navegante,
ele vem lá na curva do caminho,
no seu passo bem leve, bem mansinho,
conduzindo um a um cada brincante.
Quem seria, meu Deus, esse almirante
de humildade gigante e histórias mil?
Quem conhece, quem sabe, quem já viu
não se cansa jamais de admirá-lo.
Mestre Sales conduz o São Gonçalo
como um bom marinheiro, o seu navio.

À medida que avança a procissão,
os brincantes, batendo os calcanhares
e entoando os seus cantos pelos ares,
vão ganhando de todos a atenção.
Olha o Mestre fazendo a marcação
e brincando feliz no corrupio!
Quem o vê a dançar assim macio
é tomado de encanto pelo embalo.
Mestre Sales conduz o São Gonçalo
como um bom marinheiro, o seu navio.

Tantas são as barreiras que ele enfrenta,
mas o Mestre é valente e não se cansa
de levar adiante a sua herança
— essa dança, que, a custo, ele sustenta.
Desafia trovão, tufão, tormenta,
mas não cede seu barco ao mar bravio,
afinal é teimoso e arredio
feito o mar que insiste em devorá-lo.
Mestre Sales conduz o São Gonçalo
como um bom marinheiro, o seu navio.

O futuro, entretanto, é muito incerto
e perder sua herança o Mestre teme.
Busca, pois, incessante, para o leme
quem não tema enfrentar o mar aberto.
Algum dia descansará, por certo,
ao saber concluído o desafio,
pois herdou, divulgou e transmitiu
a cultura do povo com regalo.
Mestre Sales conduz o São Gonçalo
como um bom marinheiro, o seu navio.

Wedmo Mangueira - 2011

Link da matéria sobre a entrega da premiação:
http://www.laranjeiras.se.gov.br/ler.asp?id=273&titulo=noticias

sábado, 22 de outubro de 2011

Medusa


O que ela faz comigo
bem abaixo do umbigo,
no segredo do seu quarto,
justifica

que ela seja a minha musa,
uma espécie de Medusa
cuja língua, além do olhar,
petrifica.

Wedmo Mangueira - 2009

terça-feira, 19 de abril de 2011

Marítimo IV



De vida, de infinito ou de algo além?
Quando a boca diz "mar", que gosto tem?


Wedmo Mangueira

terça-feira, 12 de abril de 2011

Marítimo III


“Oh, rei do tempo e substância e símbolo do século, na Babilônia me quiseste perder num labirinto de bronze com muitas escadas, portas e muros; agora o poderoso achou por bem que te mostre o meu, onde não há escadas a subir, nem portas a forçar, nem cansativas galerias a percorrer, nem muros que te impeçam os passos.”

 Jorge Luis Borges.

O segredo das coisas todas
repousa sob o teu manto
 véu azul que cobre o abismo
e espelha o tom do firmamento.
Embora inumeráveis monstros
habitassem as tuas sendas,
quantos Teseus destemidos
decidiram por se lançar
à tua amplidão infinita
— o mais cruel dos labirintos,
que não impede a travessia,
mas a transforma em absurdo!

Wedmo Mangueira

quarta-feira, 30 de março de 2011

Marítimo II


“Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.”

Fernando pessoa

Um soneto que fosse como o mar:
estrutura de sal e ventania
cuja cor acompanha a luz do dia,
cujo humor acompanha a luz lunar. 

Um soneto que fosse como o mar:
tentador para aquele que o vigia,
mil perigos, contudo, propicia
ao incauto que o tenta atravessar.

Um soneto que fosse como o mar,
que ao erguer-se ante a rocha, sem cessar,
a desgasta e a transforma em areal.

Também possam meus versos, à maneira
do oceano, bater contra a pedreira
d'alma humana e tirar dela o seu sal.

Wedmo Mangueira

quarta-feira, 23 de março de 2011

Marítimo I

Ante o céu que se tinge de encarnado 
à medida que a luz do sol desmaia, 
para o mar, que se lança sobre a praia, 
lanço a luz de um olhar desconsolado. 

Um homem triste quedou-se ao meu lado... 
Os marulhos serenos da Atalaia 
devem ter - não sei bem - algo que atraia 
as pessoas de olhar atormentado. 

Ele, então, contemplando atentamente 
o oceano gigante à nossa frente, 
me falou no seu quase-sussurrar: 

“Todo aquele que tem o olhar aflito 
deveria mirar o infinito 
e sentir quão pequeno é seu penar.” 

Wedmo Mangueira - 27/11/2008 


Imagem: Ponta dos Mangues, por Thatiana Carvalho

Madrugada

- Alô?

- Saudades...

- ...

- Quem era, amor?

- Engano!

Wedmo Mangueira